O Cânon Bíblico - Paulo R. B. Anglada

Sob o nome de Escrituras Sagradas, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos os livros do Velho e do Novo Testamentos, todos dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e prática, que são os seguintes:

O Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, 1 Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cantares, Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.

O Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, 1 Pedro, 2 Pedro, 1 João, 2 João, 3 João, Judas, Apocalipse.

Os livros geralmente chamados Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do Cânon da Escritura; não são, portanto, de autoridade na Igreja de Deus, nem de modo algum podem ser aprovados ou empregados senão como escritos humanos (Confissão de Fé de Westminster, 1:2-3).



O ensino destes parágrafos da Confissão de Fé de Westminster diz respeito especialmente ao cânon das Escrituras. Nele não são indicados os critérios empregados. São apenas relacionados os sessenta e seis livros aceitos como canônicos, ou seja, como inspirados por Deus, que compõem a Bíblia Protestante. Quanto aos livros apócrifos, que foram incluídos na Bíblia Católica, são explici­ta­mente considerados não inspirados e, portanto, não autorita­tivos; não devendo ser empregados senão como escritos humanos.

A palavra cânon é mera transliteração do termo grego kanwvn, que significa vara reta, régua, regra. Aplicado às Escrituras, o termo designa os livros que se conformam à regra da inspiração e autoridade divinas. Atanásio (séc. IV) parece ter sido o primeiro a usar a palavra neste sentido.[1] São chamados de canônicos, portanto, os livros que foram inspirados por Deus, os quais compõem as Escrituras Sagradas — o cânon bíblico.

Qual o cânon das Escrituras? Quais são os livros canônicos, ou seja, inspirados? Como se dividem? Há alguma regra pela qual se pôde averiguar a canonicidade de um livro? Como explicar a diferença entre os cânones hebraico, católico e protestante? São estas as perguntas que precisam ser respondidas com relação ao presente assunto.
O CÂNON PROTESTANTE DO ANTIGO TESTAMENTO
Origem

O cânon protestante do Antigo Testamento (composto pelos trinta e nove livros relacionados acima) é exatamente igual ao cânon hebraico massorético. O cânon massorético é a Bíblia hebraica em sua forma definitiva, vocalizada e acentuada pelos massoretas. A ordem dos livros, entretanto, segue a da Vulgata e da Septuaginta.
Os Massoretas

Os massoretas eram judeus estudiosos que se dedicavam à tarefa de guardar a tradição oral (massora) da vocalização e acentuação correta do texto. À medida que um sistema de vocalização foi sendo desenvolvido, entre 500 e 950 AD, o texto consonantal que receberam dossoferim[2] foi sendo por eles cuidadosamente vocalizado e acentuado. Além dos pontos vocálicos e dos acentos, os massoretas acrescentavam também ao texto as massoras marginais, maiores e finais, calculadas pelos soferim. Essas massoras (tradições) eram esta­tísticas colocadas ao lado das linhas, ao fim das páginas e ao final dos livros, indicando quantas vezes uma determinada palavra aparecia no livro, o número de versículos, palavras e letras. Elas indicavam até a palavra e letra central do livro.[3]
O Cânon Massorético

Embora o conteúdo do cânon protestante seja o mesmo do cânon hebraico, a divisão e a ordem dos livros são diferentes. Eis a divisão e ordem do cânon hebraico:

O Pentateuco (Torá): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.

Os Profetas (Neviim):

Anteriores: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis.

Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Profetas Menores.

Os Escritos (Kêtuvim):

Poesia e Sabedoria: Salmos, Provérbios e Jó.

Rolos ou Megilloth (lidos no ano litúrgico): Cantares (na páscoa), Rute (no pentecostes), Lamentações (no quinto mês), Eclesiastes (na festa dos tabernáculos) e Ester (na festa de purim).

Históricos: Daniel, Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas.
O Cânon Consonantal

A divisão e ordem dos livros no cânon hebraico consonantal (anterior) era a mesma. O número de livros, entretanto, era diferente. O conteúdo era o mesmo, mas agrupado de modo a formar apenas vinte e quatro livros. Os livros de 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis e 1 e 2 Crônicas eram unidos, formando apenas um livro cada (o que implica em três livros a menos em relação ao nosso cânon). Os doze profetas menores eram agrupados em um só livro (menos onze livros). Esdras e Neemias formavam um só livro, o Livro de Esdras (menos um livro).
Testemunhas Antigas do Cânon Protestante Hebraico

A referência mais antiga ao cânon hebraico é do historiador judeu Josefo (37-95 AC). Em Contra Apionem ele escreve: “Não temos dezenas de milhares de livros, em desarmonia e conflitos, mas só vinte e dois, contendo o registro de toda a história, os quais, conforme se crê, com justiça, são divinos.”[4] Depois de referir-se aos cinco livros de Moisés, aos treze livros dos profetas, e aos demais escritos (os quais “incluem hinos a Deus e conselhos pelos quais os homens podem pautar suas vidas”), ele continua afirmando:

Desde Artaxerxes (sucessor de Xerxes) até nossos dias, tudo tem sido registrado, mas não tem sido considerado digno de tanto crédito quanto aquilo que precedeu a esta época, visto que a sucessão dos profetas cessou. Mas a fé que depositamos em nossos próprios escritos é percebida através de nossa conduta; pois, apesar de ter-se passado tanto tempo, ninguém jamais ousou acrescentar coisa alguma a eles, nem tirar deles coisa alguma, nem alterar neles qualquer coisa que seja.[5]

Josefo é suficientemente claro. Como historiador judeu, ele é fonte fidedigna. Eram apenas vinte e dois os livros do cânon hebraico agrupados nas três divisões do cânon massorético. E desde a época de Malaquias (Artaxerxes, 464-424) até a sua época nada se lhe havia sido acrescentado. Outros livros foram escritos, mas não eram considerados canônicos, com a autoridade divina dos vinte e dois livros mencionados.

Além de Josefo, Mileto, Bispo de Sardes, diz ter viajado para o Oriente, em 170, com o propósito de investigar a ordem e o número dos livros do Antigo Testamento; Orígenes, o erudito do Egito, que morreu em 254; Tertuliano (160-250), pai latino contemporâneo de Orígenes; e Jerônimo (340-420), entre outros, confirmam o cânon hebraico de vinte e dois ou vinte e quatro livros (dependendo do agrupamento ou não de Rute e Lamentações).

É interessante observar que o próprio Jerônimo, tradutor da Vulgata latina, que daria origem ao cânon católico, embora considerasse os livros apócrifos úteis para a edificação, não os tinha como canônicos. Embora tendo traduzido outros livros não canônicos, ele escreveu que “deveriam ser colocados entre os apócrifos,” afirmando que “não fazem parte do cânon.” Referindo-se ao livro de Sabedoria de Salomão e ao livro de Eclesiástico, ele diz: “Da mesma maneira pela qual a igreja lê Judite e Tobias e Macabeus (no culto público), mas não os recebe entre as Escrituras canônicas, assim também sejam estes dois livros úteis para a edificação do povo, mas não para receber as doutrinas da igreja.”[6]

Vale salientar ainda que a versão siríaca Peshita, que bem pode ter sido feita no século II ou III,[7] ou até mesmo no século I,[8] nos manuscritos mais antigos, não contém nenhum dos apócrifos.
O Testemunho de Jesus e dos Apóstolos

Embora as evidências já mencionadas sejam importantes, a principal testemunha do cânon protestante do Antigo Testamento é o Novo Testamento. Jesus e os apóstolos não questionaram o cânon hebraico da época (época de Josefo, convém lembrar). Eles citaram-no cerca de seiscentas vezes, de modo autoritativo, incluindo praticamente todos os livros do cânon hebraico. Entretanto, não citam nenhuma vez os livros apócrifos.[9] Pode-se concluir, portanto, que Jesus e os apóstolos deram o imprimatur deles ao cânon hebraico e, conseqüen­temente, ao cânon protestante.
O CÂNON CATÓLICO DO ANTIGO TESTAMENTO
Origem

O cânon católico, composto pelos trinta e nove livros encontrados no cânon protestante, acrescido das adições a Daniel e Ester, e dos livros de Baruque, Carta de Jeremias, 1-2 Macabeus, Judite, Tobias, Eclesiástico e Sabedoria — 3 e 4 Esdras e a Oração de Manassés são acrescentadas depois do NT — origina-se da Vulgata latina, que por sua vez provém da Septuaginta.
A Septuaginta

A Septuaginta é uma tradução dos livros judaicos para o grego feita, possivelmente, durante o reinado de Ptolomeu Filadelfo (285-245 a.C.) ou até meados do século I a.C., para a biblioteca de Alexandria, no Egito.[10] Os tradutores não se limitaram a traduzir os livros conside­rados canônicos pelos judeus. Eles traduziram os demais livros judaicos disponíveis. E, a julgar pelos manuscritos existentes, deram um arranjo tópico à biblioteca judaica, na seguinte ordem:

Livros da Lei: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

Livros de História: Josué, Juízes, Rute, 1-2 Samuel, 1-2 Reis (chamados 1-2-3-4 reinados), 1-2 Crônicas, 1-2 Esdras (o primeiro apócrifo), Neemias, Tobias, Judite e Ester.

Livros de Poesia e Sabedoria: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cantares, Sabedoria de Salomão, Sabedoria de Siraque (ou Eclesiástico).

Livros Proféticos: Profetas Menores; Profetas Maiores: Isaías, Jeremias, Baruque, Lamentações, Epístola de Jeremias, Ezequiel, e Daniel (incluindo as histórias de Susana, Bel e o Dragão e o cântico dos Três Varões).

Alguns desses livros foram escritos posteriormente, em grego, possivelmente por judeus alexandrinos, e foram incluídos na biblioteca judaica de Alexandria, tais como Primeiro e Segundo Esdras, adições a Ester, Sabedoria, e a Epístola de Jeremias. Nem sempre todos estes livros estão presentes nos manuscritos antigos da Septuaginta. O Códice Vaticano (B) omite Primeiro e Segundo Macabeus (canônicos para a Igreja Católica) e inclui Primeiro Esdras (não canônico para a Igreja Católica). O Códice Sináitico (À) omite Baruque (canônico para Roma), mas inclui o quarto livro dos Macabeus (não canônico para Roma). O Códice Alexandrino (A) inclui o Primeiro Livro de Esdras e o Terceiro e Quarto Livros dos Macabeus (apócrifos para Roma).

O que se pode concluir daí é que, quando a Septuaginta era copiada, alguns livros não canônicos para os judeus eram também copiados. Isso poderia ter ocorrido por ignorância quanto aos livros verdadeiramente canônicos. Pessoas não afeiçoadas ao judaísmo ou mesmo desinteressadas em distinguir livros canônicos dos não canô­nicos tinham por igual valor todos os livros, fossem eles original­mente recebidos como sagrados pelos judeus ou não. Mesmo aqueles que não tinham os demais livros judaicos como canônicos certamente também copiavam estes livros, não por considerá-los sagrados, mas apenas para serem lidos. Por que não copiar livros tão antigos e interessantes?

Mesmo pessoas bem intencionadas podem ter sido levadas a rejeitar alguns dos livros canônicos, ou a aceitar como canônicos alguns que não o fossem, por ignorância ou má interpretação da história do cânon. Convém lembrar que, embora o testemunho do Espírito Santo seja a principal regra de canonicidade por parte da igreja como um todo, mesmo assim, o crente ainda tem uma natureza pecami­nosa que não o livra totalmente de incidir em erro, inclusive quanto ao assunto da canonicidade. Isto acontece especialmente em épocas de tran­sição, como foi o caso de Agostinho que defendeu os livros apócri­fos, embora de modo dúbio, e depois o de Lutero, o qual colocou em dúvida a canonicidade da carta de Tiago.
A Vulgata

Como já foi mencionado, ao traduzir a Vulgata, Jerônimo também incluiu alguns livros apócrifos. Não o fez, contudo, por considerá-los canônicos, mas apenas por considerá-los úteis, como fontes de informação sobre a história do povo judeu.

Na Idade Média a versão francamente usada pela igreja foi a Vulgata latina. A partir dela e da Septuaginta também foram feitas outras traduções. Ora, multiplicando-se o erro, e afastando-se cada vez mais a igreja da verdade (como aconteceu crescentemente nesse período), tornou-se mais e mais difícil distinguir entre os livros que deveriam ser considerados canônicos ou não. Esses livros nunca foram completa­mente aceitos, mesmo nessa época. Mas, por estarem incluídos nessas versões, a igreja em época de trevas, geralmente falando, não teve discernimento espiritual para distinguir entre livros apócrifos e canônicos.

Por fim, no Concílio de Trento, em 1546, também em reação contra os protestantes, que reconheceram apenas o cânon hebraico, a igreja de Roma declarou canônicos os livros apócrifos relacionados acima, bem como autoritativas as tradições orais: “O Sínodo... recebe e venera todos os livros, tanto do Antigo como do Novo Testamento... assim como as tradições orais.” A seguir são relacionados todos os livros considerados canônicos, incluindo os apócrifos. Concluindo, o decreto adverte:

Se qualquer pessoa não aceitar como sagrado e canônico os livros mencionados em todas as suas partes, do modo como eles têm sido lidos nas igrejas católicas, e como se encontram na antiga Vulgata latina, e deliberadamente rejeitar as tradições antes mencionadas, seja anátema.[11]

A igreja grega seguiu mais ou menos os passos da igreja ocidental. Houve sempre dúvida na aceitação dos apócrifos, mas, no Concílio de Trulano, em 692, foram todos aceitos (quatorze). Ainda assim, como sempre houve reservas quanto à plena aceitação de muitos deles, a igreja grega, em 1672, acabou reduzindo para quatro o número dos apócrifos aceitos: Sabedoria, Eclesiástico, Tobias e Judite.[12]
Conclusão

Por ironia da História, a Vulgata de Jerônimo, o qual não considerava canônicos os livros apócrifos,[13] veio a ser a principal responsável pela inclusão destes mesmos livros no cânon católico.

A obra dos reformadores foi maior do que se pode pensar à primeira vista. Eles não apenas redescobriram as doutrinas básicas do evangelho, como a doutrina da salvação pela graça mediante a fé. Eles redescobriram também o cânon. Graças a eles e ao testemunho do Espírito Santo, a igreja protestante reconhece como canônicos, com relação ao Antigo Testamento (é claro), os mesmos livros que Jesus e os apóstolos, e os judeus de um modo geral sempre reconheceram.

Alguns dos apócrifos são realmente úteis como fontes de informação a respeito de uma época importante da história do povo de Deus: o período inter-testamentário. Os protestantes reconhecem o valor histórico deles. Seguindo a prática dos primeiros cristãos, as edições modernas protestantes da Septuaginta normalmente incluem os apócrifos, e até algumas Bíblias protestantes antigas os incluíam, no final,, apenas como livros históricos.

Mas as igrejas reformadas excluíram totalmente os apócrifos das suas edições da Bíblia, e, “induziram a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, sob pressão do puritanismo escocês, a declarar que não editaria Bíblias que tivessem os apócrifos, e de não colaborar com outras sociedades que incluíssem esses livros em suas edições.”[14] Melhor assim, tendo em vista o que aconteceu com a Vulgata! Melhor editá-los separadamente.
O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO

Por motivos óbvios, os judeus não aceitam os livros do Novo Testamento como canônicos. Se não reconheceram a Jesus como o Messias, não poderiam aceitar os livros do Novo Testamento como inspirados. Felizmente, entretanto, não precisamos falar de um cânon protestante e de um cânon católico do NT, visto que todos os ramos do cristianismo — incluindo a igreja oriental — aceitam exatamente os mesmos vinte e sete livros, como os temos em nossas Bíblias.

É claro, entretanto, que não se poderia esperar que todos os vinte e sete livros do Novo Testamento viessem a ser imediata e simultaneamente reconhecidos como inspirados, por todas as igrejas, logo na época em que foram escritos. Algum tempo seria necessário para que os quatro Evangelhos, o livro de Atos, as epístolas, e o livro de Apocalipse alcançassem todas as igrejas. Afinal, no final do primeiro século e no início do segundo a igreja já havia se espalhado por três continentes: Europa, Ásia e norte da África. Além disso, é provável que haja um intervalo de quase cinqüenta anos entre a data em que o primeiro e o último livro do Novo Testamento foram escritos.[15] Por fim, deve-se considerar ainda que, embora todos os livros canô­nicos sejam inspirados, nem todos têm a mesma importância ou volume. É natural esperar que cartas pequenas como Judas, e as duas últimas cartas de João, fossem bem menos mencionadas do que os Evangelhos, Atos, Romanos, etc.

Também é preciso observar que havia outros livros cristãos antigos: evangelhos, cartas, atos, apocalipses, etc. Alguns desses livros foram escritos por crentes piedosos do primeiro e segundo séculos, outros eram indevidamente atribuídos aos apóstolos ou aos seus contemporâneos. Algum tempo, é claro, seria necessário para que a igreja, de um modo geral, de posse já de todos os livros canônicos, bem como de muitos outros não canônicos, viesse a avaliar a autoria, teste­munho externo e interno, e discernir, pela ação do Espírito Santo, quais livros realmente pertenceriam ao cânon. Isso tudo, entretanto, ocorreu de modo surpreendentemente rápido, de maneira que antes que cem anos se passassem, praticamente todos os livros do Novo Testa­mento já eram conhecidos, reunidos, reverenciados e tidos como autoritativos, conforme atestam as evidências históricas existentes.
Critérios de Canonicidade dos Livros do Novo Testamento

A principal questão teológica com relação ao cânon do NT diz respeito ao critério ou critérios que determinaram a canonicidade dos livros do NT. Por que os vinte e sete livros, e apenas estes, incluídos em nossas Bíblias são aceitos como canônicos? A resposta a esta pergunta encontra-se, em última instância, na doutrina da inspiração. São canônicos os livros que foram inspirados por Deus. Mas como foi reconhecida a inspiração dos livros do NT? Quais os critérios que levaram a igreja a aceitar todos os vinte e sete livros, e apenas estes, como inspirados e conseqüentemente canônicos?
1) O TESTEMUNHO INTERNO DO ESPÍRITO SANTO

O critério essencial é o mesmo que levou ao reconhecimento do Antigo Testamento: o testemunho interno do Espírito Santo na igreja como um todo. É certo, como já foi mencionado, que crentes individuais podem falhar em identificar ou não certos livros como canônicos — especialmente em épocas de transição, como nos primei­ros séculos da igreja na nova dispensação e durante o período da Reforma. Não obstante, o testemunho da igreja como corpo (não como instituição ou indivíduos isoladamente) é o principal critério de verifi­ca­ção da canonicidade das Escrituras.

Isso não significa dizer, entretanto, que seja a igreja quem tenha determinado o cânon. Quem determinou o cânon foi o Espírito Santo que o inspirou. A igreja apenas o reconheceu, o discerniu, pela iluminação do próprio Espírito Santo, que habita nos seus membros individuais. William Whitaker, professor de Teologia na Universidade de Cambridge, no livro Disputation on Holy Scripture, publicado em 1588, e freqüentemente citado na Assembléia de Westminster, resume o papel da igreja como corpo e dos crentes individuais com relação ao reconhecimento do cânon, com as seguintes palavras: “...a autoridade da igreja pode, a princípio mover-nos a reconhecermos as Escrituras: mas depois, quando nós mesmos lemos as Escrituras, e as compreende­mos, concebemos uma fé verdadeira...”[16] — isto é, somos convencidos pelo Espírito da sua veracidade e identidade.

As evidências históricas deste reconhecimento do cânon do Novo Testamento pela igreja são abundantes.

Logo no final do primeiro século e início do segundo (até 120 d.C.), boa parte dos livros do Novo Testamento já era conhecida, citada e até reverenciada como autoritativa pelos primeiros escritos cristãos que chegaram até nós. É o caso da Carta de Clemente de Roma aos Coríntios, escrita por volta do ano 95; das cartas de Inácio de Antio­quia da Síria, bispo que morreu martirizado em Roma entre 98 e 117; da Epístola aos Filipenses, de Policarpo, discípulo de João que morreu martirizado, escrita pouco antes do martírio de Inácio; etc. Apenas a segunda e terceira Carta de João e a carta de Judas não são menciona­das nestes escritos mais antigos; obviamente por falta de oportunidade, visto serem muito pequenas.

Na metade do segundo e no terceiro século, quando já há mais abundância de escritos, preservados,[17] todos os livros do NT são citados, e todos, de modo geral, reconhecidos como autoritativos, embora a canonicidade de alguns livros seja colocada em dúvida ou rejeitada por um ou outro autor antigo. Orígenes de Alexandria (185-250) e Eusébio de Cesaréia (265-340), seguindo Orígenes, por exem­plo, parecem lançar dúvidas sobre Hebreus, 2 Pedro, 2 e 3 João, Tiago e Judas. Neste período, o assunto da canonicidade dos livros foi debatido e defendido, tendo em vista as posições heréticas, como as de Marcião e outros representantes do gnosticismo. Em 367, Atanásio apresenta uma lista dos livros canônicos do Novo Testamento, incluindo todos os vinte e sete livros, e apenas estes. Finalmente, em 397, no Concílio de Cartago, a igreja reconheceu oficialmente todos os vinte e sete livros, e só estes, como canônicos. Esta decisão foi ratificada pelo Concílio de Hipona, em 419.
2) ORIGEM APOSTÓLICA

Pelo lado humano, a origem apostólica foi, sem dúvida, o critério mais importante considerado pela igreja, para o reconhecimento da canonicidade do Novo Testamento. Assim como os profetas (no sentido lato) do Antigo Testamento eram a voz autorizada de Deus para o povo — e de algum modo, todos os livros do AT têm origem profética — assim também a origem apostólica autenticava um livro como autoritativo, e conseqüentemente canônico. Os apóstolos eram as testemunhas autorizadas escolhidas por Jesus, como dirigentes da igreja que surgia. Para os pais da igreja este era o critério mais importante. Fosse possível provar que um determinado livro era de origem apostólica, isso seria suficiente para ser reconhecido como canônico. Por outro lado, havendo dúvida quanto à origem apostólica fatalmente haveria relutância — como realmente houve — na aceitação da canonicidade de um livro.

O fato é que todos os livros aceitos como canônicos eram de autoria apostólica, ou tidos como de origem apostólica. Mesmo Marcos está ligado a Pedro (foi até chamado de Evangelho de Pedro), Lucas e Atos provinham da autoridade de Paulo; e Hebreus era também considerado de Paulo; Tiago e Judas, dos apóstolos que tinham esse nome.
3) O CONTEÚDO DOS LIVROS

O conteúdo dos livros também foi sempre um critério importante no reconhecimento da canonicidade dos livros do NT. Livro algum, em desacordo com o padrão doutrinário e moral, ensinado por Jesus e os apóstolos, seria recebido como autoritativo. Foi assim que muitos escritos heréticos foram repudiados pela igreja. Foi com base nesta regra, também, que muitos livros apócrifos foram rejeitados, visto que em franco desacordo com o caráter, simplicidade, doutrinas e ética dos livros canônicos.
4) AS EVIDÊNCIAS INTERNAS DO NT

Embora os critérios acima tenham sido decisivos, as evidências internas do próprio NT, quanto à inspiração e autoridade de alguns desses livros, revestem-se de especial importância. É claro que não se deve esperar encontrar uma lista completa do cânon do Novo Testamento dentro do próprio Novo Testamento. Não é assim que Deus age. O lado humano da revelação (o instrumento) não é eclipsado pelo divino — não é assim na inspiração (as Escrituras não são pneuma­grafadas), não é assim na preservação (as Escrituras não são pneumapreservadas), e também não é assim no cânon (as Escrituras não são pneumacanonizadas). O elemento fé permeia toda a Bíblia, e “a fé é a convicção de fatos que se não vêem”(Hb 11:1).

Isto, entretanto, não significa de modo algum que os autores dos livros do Novo Testamento e seus primeiros leitores não tivessem consciência da inspiração desses livros. Alguns assim afirmam dizendo que, de início, as cartas e Evangelhos foram escritos e recebidos como cartas e livros comuns, sem pretensão de inspiração ou canonicidade, por parte dos autores e leitores. Contudo tal afirmação não corresponde aos fatos. Há, no prório Novo Testamento, evidências claras da inspiração, autoridade e conseqüente canonicidade desses livros. O apóstolo Paulo não escreve como alguém que aconselha, exorta ou en­si­na de si mesmo, mas com autoridade divina, extraordinária. De onde provém a autoridade de Paulo, ao exortar os Gálatas (1:8), dizendo: “...ainda que nós, ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evan­gelho que vá além do que vos tenho pregado, seja anátema”? Ele explica logo a seguir, quando afirma: “...o evangelho por mim anun­ciado não é segundo o homem; porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gl 1:11,12).

Que os livros do NT não tinham caráter meramente circuns­tancial, específico e momentâneo é evidente nas exortações no sentido de que fossem lidos publicamente (o que só se fazia com as Escrituras), e em outras igrejas (1 Ts 5:27; Cl 4:16). Paulo afirma que os tessaloni­censes receberam as suas palavras como palavra de Deus; e ele confirma que realmente são:

Outra razão ainda temos nós para incessantemente dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homem, e sim, como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes (1 Ts 2:13).

O apóstolo Pedro também coloca os escritos de Paulo em pé de igualdade com as Escrituras, reconhecendo autoridade igual à do Antigo Testamento:

...e tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como de fato costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles (2 Pe 3:15-16).

Em 1 Timóteo 5:18, o texto de Lucas 10:7 é chamado de Escritura, juntamente com Deuteronômio 25:4: “Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi, quando pisa o grão (Dt 25:4). E ainda: O trabalhador é digno do seu salário” (Lc 10:7).
Os Livros Disputados

Como já mencionado, alguns pais da igreja tiveram dúvidas quanto à canonicidade de alguns livros do NT. Enquanto a maioria dos livros praticamente nunca tiveram a sua canonicidade disputada pela igreja, outros sofreram alguma resistência, embora parcial, para serem aceitos como canônicos. Os principais foram: Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse.

Entretanto, não é difícil compreender as razões desta relutância, pois cada um desses livros apresenta uma ou outra característica que, de certo modo, justificava o zelo por parte da igreja em averiguar mais cuidadosamente a canonicidade deles. Afinal, haviam outros livros cristãos, de conteúdo fiel e ortodoxo, que poderiam ser confundidos, se não houvesse discernimento por parte da igreja; a exemplo do que aconteceu com os apócrifos do Antigo Testamento, pela Igreja Católica.

Não é muito difícil compreender os motivos que levaram os referidos livros a terem sua canonicidade disputada. No caso de Hebreus, o problema estava na autoria e estilo. A tradição dizia ser de Paulo, mas não há o nome do autor, como é costume de Paulo. O estilo também não é exatamente o mesmo, embora haja muita semelhança. Com relação a Tiago, a aparente discrepância doutrinária com as demais cartas e a possibilidade de haver sido escrita por outro Tiago certamente dificultaram o reconhecimento da sua canonicidade. A segunda carta de Pedro, além de, por razões desconhecidas, provavel­mente haver tido circulação limitada, apresenta alguma diferença de vocabulário e estilo, o que, segundo Jerônimo, foi a causa de alguns pais duvidarem da genuinidade da epístola.[18] Quanto a Judas e 2 e 3 João, o próprio tamanho, importância relativamente menor, e a natureza mais pessoal das duas últimas, certamente dificultaram a circulação e reconhecimento delas no cânon — no caso de Judas, a questão da origem apostólica também pesou. Já o livro de Apocalipse, o qual teve aceitação generalizada no segundo século, teve sua canonicidade posteriormente disputada, provavelmente pela dúvida lançada por Dionísio de Alexandria, seguido por Eusébio de Cesaréia, quanto à origem apostólica do livro, devido ao que consideravam diferenças de estilo entre ele e o Evangelho de João; o que o levou a atribuir o livro a um outro João.

É claro que estas dificuldades são todas aparentes. Estilo não pode ser determinante, pois a natureza do assunto pode acarretar mudança de estilo. Além disso era comum o uso de amanuenses. Tamanho “também não é documento;” e assuntos relativamente menos importantes tornam-se importantíssimos em determinadas circunstân­cias — a História da Igreja tem comprovado isso. Quantas vezes as cartas de Judas, 2 e 3 João têm sido de valor inestimável para pessoas e igrejas específicas! A “discrepância” doutrinária de Tiago já tem sido suficientemente explicada: é apenas aparente. A relutância por parte de alguns, no terceiro ou quarto séculos em reconhecer a canonicidade desses livros não deve de modo algum ser encarada como necessaria­mente depreciativa. Pelo contrário, por mais que tenham sido submeti­dos a teste, até pelos reformadores, esses livros foram aprova­dos pela História, e encontraram lugar seguro e imbatível no cânon do Novo Testamento.
Conclusão

Sejam quais forem os critérios que mais influenciaram os pais da igreja no reconhecimento dos livros do Novo Testamento, e apesar da relutância de alguns em aceitar todos os vinte e sete livros, e não obstante o grande número de livros apócrifos que surgiram nos primeiros séculos, o verdadeiro cânon teria que prevalecer. E prevale­ceu. Inspirados que eram, tinham poder espiritual inerente. E este poder manifestou-se de tal modo que todos os ramos do cristianismo alcança­ram unanimidade espantosa, de modo que desde pelo menos Atanásio, o primeiro a apresentar uma lista completa do cânon do NT, até nossos dias, não tem havido nenhuma objeção realmente séria quanto à canonicidade do NT, nos três principais ramos do cristianismo.




* Extraído de Paulo R. B. Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998), 33-48.

[1] A. Bentzen, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: ASTE, 1968. vol.1.), 29.


[2] Ordem dos escribas que originou-se com Esdras, e que se estendeu até 200 AD, cuja função era preservar puro o texto bíblico.


[3] O que funcionava mais ou menos como os modernos dígitos verificadores usados nos compu­tadores para evitar erros em informações importantes como número de contas bancárias, CPF, CGC, etc.


[4] Ele menciona vinte e dois, ao invés de vinte e quatro, porque com certeza, originalmente, Rute era agrupado com Juízes e Lamentações com Jeremias.


[5] Capítulo primeiro.


[6] Gleason L. Archer Jr, Merece Confiança o Antigo Testamento? (São Paulo: Vida Nova, 1979), 76.


[7] R. L. Harris, Inspiration and Canonicity of the Bible; An Historical and Exegetical Study, 216; Wilbur N. Pickering, The Identity of the New Testament Text, 93-96; e Archer Jr, Merece Confiança o Antigo Testamento?, 51.


[8] “...é provável que certas porções do Antigo Testamento siríaco, em primeiro lugar o Pentateuco, tenham sido introduzidos naquele reino nos meados do primeiro século de nossa era” (R. A. H. Gunner, Texto e Versões do Antigo Testamento. Versão Siríaca,em J. D. Douglas, ed., O Novo Dicionário da Bíblia. vol. 3, 3 ed. (São Paulo: Vida Nova, 1979): 1598.


[9] Com exceção de Enoque 1:9, aludido em Judas 14-16; contudo, não citado autoritativamente, e sim como qualquer outro autor; assim como Paulo cita Arato em Atos 17:28 e Menander em 1 Coríntios 15:33.


[10] A biblioteca de Alexandria, segundo alguns, chegou a ter cerca de duzentos mil volumes.


[11] R. L. Harris, Inspiration and Canonicity of the Bible; An Historical and Exegetical Study (Grand Rapids: Zondervan, 1957), 192.


[12] Archer Jr, Merece Confiança o Antigo Testamento?, 80.


[13] Jerônimo foi o primeiro a usar o termo apócrifo.


[14] A. Bentzen, Introdução ao Antigo Testamento, 49


[15] A Epístola aos Gálatas foi escrita por volta de 48/50 e o Livro de Apocalipse entre 81/96.


[16] Citado em Wayne Spear, "The Westminster Confession of Faith and Holy Scripture," Premise 3:4 (1996): 9. Internet, http://www.capo.org/premise/96/april/p960409.html


[17] Tais como os de Justino Mártir (165), Irineu (170), Clemente de Alexandria e Tertuliano de Cartago (200).


[18] M. Tenney, Nuestro Nuevo Testamento; Una Perspectiva Historico Analitica (Chicago: Editoral Moody, 1973), 477
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