João Calvino ensinou que as revelações cessaram após o estabelecimento da igreja. Para ele a única profecia vigente na igreja atual é o ensino e a pregação. Gostemos ou não, João Calvino era cessacionista. Destarte, qualquer pessoa que queira juntar calvinismo com continuacionismo precisa admitir que está recortando e colando pedaços de teologia diferentes;
por mais que o resultado disso seja algo vivo, não passa de um “Frankenstein” doutrinário.
A convicção cessacionista de Calvino é constatada nas Institutas:
"Mas, de fato, quando Cristo já não estava longe, foi apontado a Daniel o tempo “para selar a visão e a profecia” [Dn 9.24), não somente para que a autoridade do vaticínio se evidenciasse segura do que ali se trata, mas também para que os fiéis ficassem de ânimo tranquilo, sem profetas por um tempo, uma vez que estaria iminente a plenitude e conclusão de todas as revelações. Institutas, II.XV.1."
"Entretanto, isto permanece estabelecido: com esta perfeição da doutrina, que Cristo trouxe, pôs-se um fim a todas as profecias, de tal sorte que violam sua autoridade quantos, não contentes com o evangelho, o remendam de algo estranho. Institutas, II.XV.2."
"Por isso agora, desde que Cristo, o Sol da Justiça, brilhou, temos o perfeito fulgor da verdade divina, como costuma ser a claridade ao meio-dia, quando antes a luz era fosca. Ora, de fato, o Apóstolo não quis proclamar algo vulgar quando escreveu “haver Deus outrora falado aos pais, em muitas ocasiões e de muitos modos, pelos profetas; mas que nestes últimos dias começou a falar-nos pelo Filho dileto” [Hb 1.1, 2]; pois ele quer dizer, mais ainda, declara abertamente que doravante Deus não falará como fez até agora, intermitentemente, pelos lábios de uns e de outros, nem acrescentará profecias a profecias, ou revelações a revelações, mas que no Filho consumou de tal modo todas as partes do ensino, que este será tido como o derradeiro e eterno testemunho de sua parte. Institutas, IV.VIII.7."
Para Calvino, a capacidade de “profetizar”, sinalizada por Joel, significava nada mais do que a fé ou conhecimento salvador de Cristo; Deus iluminaria os descrentes com seu Espírito, tornando-os seus discípulos:
"Notável é, acima das outras, a passagem de Joel [2.28]: “Naquele dia derramarei de meu Espírito sobre toda carne.” Pois, se bem que o Profeta parece restringir os dons do Espirito à função profética, entretanto, sob esta figura, subentende que, mercê da iluminação de seu Espírito, Deus haverá de fazer para si discípulos àqueles que foram antes carentes e destituídos da celeste doutrina. Institutas, III.I.2."
"O que Deus conferiu aos Profetas antigos, exceto o poder de predizer algo porvir? Foi um presente especial e muito limitado. Tais previsões não podem ser comparadas com a sabedoria celestial dada a conhecer no evangelho. Se devidamente calculado, após a vinda de Cristo, a fé supera de longe o dom da profecia. Comentário a Joel 2.28-29."
Portanto, esta palavra “profetizarão” não significa outra coisa senão o dom raro e excelente de entendimento, como se Joel dissesse que, sob o reino de Cristo, Deus não revelará seus segredos a apenas alguns profetas, mas todos serão dotados de sabedoria espiritual [...]. Como lemos em Jeremias: “Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao SENHOR, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles” (Jr 31.34). Comentário a Atos 2.17, 18.
Quanto ao dom de profecia, citado na cartas aos Romanos e em 1Coríntios, para Calvino, trata-se da capacidade de compreender, expor e aplicar as Escrituras.
Portanto, na Igreja Cristã, nos tempos atuais, profecia é simplesmente o correto entendimento da Escritura e o dom particular de explicá-la, visto que todas antigas profecias e todos os oráculos divinos já foram concluídos em Cristo e seu evangelho. Comentário a Romanos 12.6.
Este versículo, pois, nos ensina que os profetas são (1) destacados intérpretes da Escritura; e (2) homens dotados com extraordinária sabedoria e aptidão para compreenderem qual é a necessidade imediata da Igreja e falarem-lhe a palavra exata de que ela carece para o seu sustento. [...] Resumindo, meu ponto de vista consiste em que os profetas referidos aqui são homens habilidosos e experientes em fazer conhecida a vontade de Deus, aplicando as profecias, ameaças, promessas e todo ensino da Escritura às necessidades correntes da Igreja. Comentário a 1Coríntios 12.28.
O próprio Calvino admitiu que sua grade de interpretação cessacionista talvez não fosse aceita por seus contemporâneos.
Se porventura alguém é de outra opinião, estou disposto a reconhecer que há espaço para ela, e não provocarei qualquer disputa com ele por causa disto. Pois é difícil mudar a mente de alguém sobre os dons e os ofícios, dos quais a Igreja foi privada por muito tempo, a não ser aqueles leves traços ou sombras deles que ainda podem ser percebidos. Comentário a 1Coríntios 12.28.
Tal admissão da possibilidade de outro ponto de vista, não deve ser entendido como uma capitulação. O mestre de Genebra tratou respeitosamente a quem pensava diferente, sem abrir mão, um milímetro sequer, de sua leitura cessacionista. Em sua carta ao Rei Francisco I, ele afirmou que a doutrina protestante (e consequentemente a igreja que a abraçava) era ridicularizada porque não era confirmada por milagres contemporâneos:
Nem ainda assim cessam de investir contra nossa doutrina e de invectivá-la e infamá-la com quantas alcunhas possam, no empenho de torná-la ou odiosa ou suspeita. Dizem ser ela doutrina nova e originada não há muito. Ridicularizam-na de ser duvidosa e incerta. Indagam de que milagres tenha sido confirmada. Carta ao Rei Francisco I, 5.
Ele respondeu dizendo que nenhum outro milagre era necessário senão os realizados por Cristo e pelos apóstolos:
Por exigirem de nós milagres, agem de má fé. Ora, não estamos a forjar algum evangelho novo; ao contrário, retemos aquele mesmo à confirmação de cuja verdade servem todos os milagres que outrora operaram assim Cristo como os apóstolos. Carta ao Rei Francisco I, 7.
E continua:
Mágicos e encantadores sempre se destacaram por seus milagres. A idolatria sempre foi nutrida por milagres de causar pasmo. Contudo, eles não legitimam nossa superstição, nem dos magos, nem dos idólatras. Ibid., loc. cit.
Calvino protestou não apenas contra o Romanismo, mas também contra os reformadores radicais – a quem ele chamava de “entusiastas” (entenda-se que “entusiasmo” tem o sentido religioso de “arrebatamento espiritual”):
"O que esses inflados entusiastas dirão acerca destas coisas, os quais reputam esta como sendo apenas a sublime iluminação, quando, abrindo mão despreocupadamente e dizendo adeus à divina Palavra, não menos confiantes que temerários, agarram sôfregos qualquer coisa que hajam concebido enquanto dormitam? Certamente que aos filhos de Deus lhes fica bem a sobriedade, os quais, ao mesmo tempo que, sem o Espírito de Deus, se veem privados de toda a luz da verdade, todavia não ignoram que a Palavra é o instrumento pelo qual o Senhor dispensa aos fiéis a iluminação de seu Espírito. Pois não conhecem outro Espírito além daquele que habitou e falou nos apóstolos, de cujos oráculos são continuamente convocados a ouvir a Palavra. Institutas, I.IX.3."
O que consta até aqui basta para demonstrar, sem sombra de dúvida, que quem afirma ser calvinista consistente não pode, ao mesmo tempo, identificar-se como um continuacionista ou restauracionista. Quem disser que é reformado calvinista e também continuacionista, deverá fazê-lo afirmando que seu calvinismo é pontual: ele aceita alguns ensinos de Calvino enquanto descarta outros.
Misael
Fonte: Post "Calvinistas Consistentes" - www.misaelbn.com
Muito interessante este post, pois alguns calvinistas infelizmente têm sustentado que Calvino era continuísta.
ResponderExcluirParabéns pelo texto.
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