O fato de exigirem de nós milagres, agem de má fé. Ora, não estamos a forjar
algum evangelho novo; ao contrário, retemos aquele mesmo à confirmação de cuja
verdade servem todos os milagres que outrora operaram assim Cristo como os apóstolos.
Acima de nós, eles têm isto de singular, que podem confirmar sua fé mediante
constantes milagres até o presente dia! Contudo, o fato é que estão antes a invocar
milagres que se prestam a perturbar o espírito doutra sorte inteiramente sereno, a tal
ponto são eles ou frívolos e ridículos, ou fúteis e falsos! Todavia, nem mesmo se
esses alegados milagres fossem mui prodigiosos, certamente que não seriam contra
a verdade de Deus, quando importa que o nome de Deus por toda parte e a todo
tempo seja santificado, quer através de portentos, quer mediante a ordem natural
das coisas.
Talvez mais deslumbrante poderia ser esse aparente matiz, não fora que a Escritura
nos adverte quanto ao legítimo propósito e uso dos milagres. Ora, os sinais que
acompanharam a pregação dos apóstolos, no-lo ensina Marcos [16.20], foram operados
para sua confirmação. De igual modo, também Lucas narra que o Senhor deu
testemunho da palavra de sua graça, quando foram operados sinais e portentos pelas
mãos dos apóstolos [At 14.13]. Ao que se torna muito semelhante esta palavra do
Apóstolo: Anunciado o evangelho, a salvação foi confirmada, testemunhando jun-
tamente com eles o Senhor, mediante sinais, portentos e muitos atos de poder [Hb
2.4; Rm 15.18, 19].
Quando, pois, ouvimos que eles constituem marcas do evangelho, porventura os
converteremos em destruição da autoridade do evangelho? Quando ouvimos que
foram destinados simplesmente à autenticação da verdade, porventura os acomodaremos
à confirmação de mentiras? Portanto, é conveniente examinar e investigar,
em primeiro lugar, a doutrina, a qual o evangelista diz ter precedência sobre os
milagres; doutrina que, se for aprovada, só então deve, por fim, de direito, receber
a confirmação dos milagres.
Entretanto, a marca distintiva da boa doutrina, da qual o autor é Cristo, é esta:
ela não se inclina a buscar a glória dos homens, mas a de Deus [Jo 7.18; 8.50].
Quando Cristo declara que esta é a comprovação da doutrina, os milagres são visualizados
em falsa luz, os quais são levados a outro propósito que não é o de glorificar
o nome do Deus único. E convém que tenhamos sempre em mente que Satanás
tem seus milagres, os quais, embora sejam falazes prestidigitações, antes que genuínos
prodígios, entretanto são de tal natureza, que podem seduzir os desavisados e
simplórios [2Ts 2.9, 10]. Mágicos e encantadores sempre se destacaram por seus
milagres. A idolatria sempre foi nutrida por milagres de causar pasmo. Contudo,
eles não legitimam nossa superstição, nem dos magos, nem dos idólatras.
E com este aríete, os donatistas, outrora, abusavam da simplicidade da população,
de que eram poderosos em milagres. Portanto, agora respondemos a nossos
adversários, o mesmo que Agostinho respondeu então aos donatistas: o Senhor
nos acautelou contra esses milagreiros quando predisse que haveriam de vir falsos
profetas, os quais, em virtude de sinais mentirosos e prodígios vários, induziriam
os eleitos ao erro, se isso pudesse acontecer [Mt 24.24]. E Paulo advertiu que o
reino do Anticristo haverá de vir com todo poder, e sinais, e prodígios enganosos
[2Ts 2.9].
Mas, insistem eles, esses milagres não são operados por ídolos, nem por mistificadores,
nem por falsos profetas, mas pelos santos. Como se na verdade não soubéssemos
que esta é a artimanha de Satanás: transformar-se em anjo de luz [2Co 11.14].
Em tempos idos, os egípcios cultuaram a Jeremias, sepultado em seu meio, com
sacrifícios e outras honras divinas. Porventura não estavam abusando do santo profeta
de Deus para os fins de sua idolatria? E no entanto com tal veneração de seu
sepulcro chegavam ao ponto de pensar que, como justa recompensa disso, eram
curados da picada de serpentes! Que diremos, senão que sempre foi esta, e haverá
de sempre ser, a mui justa punição de Deus: enviar a eficácia do erro àqueles que
não têm recebido o amor da verdade, para que creiam na mentira [2Ts 2.11]?
Portanto, de modo nenhum nos faltam milagres, e esses não são passíveis de
dúvida, nem suscetíveis a zombarias. Aqueles, porém, aos quais eles apelam em seu abono, são meros embustes de Satanás, uma vez que desviam o povo do verdadeiro culto de seu Deus para o engano.
As InstitutasouTratado da Religião Cristã
vol. 1
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