O ESTADO E O DIREITO DE PECAR




Este texto baseia o anterior: "O direito de Salomão e a união homoafetiva" e é uma resposta a todos os comentários atacando o meu ponto de vista.

"Você se acha o dono da verdade". Essa é uma das acusações mais comuns dirigidas aos cristãos. Afinal, aqueles que possuem conhecimento bíblico têm opiniões fortes sobre uma série enorme de assuntos: aborto, sexualidade, casamento, ética, vida após a morte, entre outros. Mais do que opiniões, são convicções. Os cristãos estão certos de que estão defendendo a verdade.

Só que o desejo não é apenas o de verbalizar isso. Sendo sincero, o meu desejo e o de todos os cristãos sinceros é o de ver todo o mundo vivendo por essas verdades. Nós realmente achamos que seria melhor se todos aceitassem a Bíblia como uma regra suprema e confiável de fé e prática. Não temos dúvida quanto a isso.

No entanto, há dois "pequenos" problemas. O primeiro é que a maioria das pessoas não concorda conosco e não aceita os nossos pontos de vista. E muitos estariam dispostos a pegar em armas para impedir-nos de "cristianizarmos" o mundo. O segundo é descobrir de que forma Jesus Cristo quer que influenciemos o mundo nesta fase atual da História.

E estes dois problemas esbarram em uma relação complicada, entre Igreja e Estado. Para alguns cristãos, a teocracia é necessária e o Estado deve se sujeitar às leis de Deus, independente de qualquer coisa. O Estado deve ser um agente para submeter o mundo à vontade do Senhor, coibindo o pecado. Para alguns outros, Igreja e Estado são separados e o Estado não tem papel algum na tarefa de transformar a sociedade. A maioria fica entre essas posições.

E eu também. É o que pretendo explicar abaixo.

O reino de Deus não é deste mundo


A primeira coisa que precisamos entender é que os cristãos jamais verão "o reino de Deus" implantado na Terra até a vinda de Jesus. Na atual fase da História, não será comum vermos uma sociedade proclamando o Cristo como seu verdadeiro Rei e vivendo de acordo com a vontade de Deus revelada na Bíblia.

Quando Jesus ensinava sobre o "reino de Deus", Ele não se referia a um governo terreno. Ele não imaginava o Império Romano se curvando diante da Igreja e deixando que suas leis sejam julgadas pelos fiéis. Ele não vislumbrava um Estado punindo todo tipo de pecado e empregando seus exércitos e funcionários em defesa da fé bíblica.

Ao contrário, Jesus rechaçou esse tipo de reino quando ele estava diante de Pôncio Pilatos:

Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. (João 18:36)
O reino de Deus é espiritual e não temporal. A visão católica das duas espadas e as aspirações de um Estado confessional puritano não batem com essa fala de Jesus a Pilatos. O Senhor é Rei e possui sim ministros, embaixadores e soldados...espirituais. Eles são formados pela Igreja, por todos aqueles que creem em Jesus:

Mas vós sereis chamados sacerdotes do SENHOR, e vos chamarão ministros de nosso Deus; comereis as riquezas das nações e na sua glória vos gloriareis. (Isaías 61:6)

De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. (2 Coríntios 5:20)

Participa dos meus sofrimentos como bom soldado de Cristo Jesus. Nenhum soldado em serviço se envolve em negócios desta vida, porque o seu objetivo é satisfazer àquele que o arregimentou. (2 Timóteo 2:3-4)
Creio que isso deveria nos levar a uma reflexão. A transformação que Deus deseja fazer no mundo não será levada a cabo por meio do Estado, mas sim da Igreja. Os ministros que se empenham por Cristo são os seus fiéis.

E como eles fazem isso? A resposta é dada pelo próprio Jesus: Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo:

Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto,fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século. (Mateus 28:18-20)
Basicamente o papel da Igreja neste mundo é pregar e viver o Evangelho. Devemos ir a todas as nações e fazer discípulos que sigam a Jesusvoluntariamente. Esses seguidores devem ser recebidos na Igreja pelo batismo e devem ser ensinados a obedecer (guardar) o que Jesus ensinou. Ensinados, não forçados. E este é um papel da Igreja e não do Estado.

Qual o papel do Estado?


E isso nos leva a uma outra pergunta: qual é o papel do Estado? Dois passos precisam ser dados para descobrir isso. O primeiro é ver o que a Bíblia diz e a segunda é considerar o que ela não atribui ao Estado. Comecemos com Romanos 13:8.
Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal.
É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo, também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra. (Romanos 13:1-8)
Inicialmente, não podemos nos esquecer de que a carta de Paulo é dirigida a cristãos em Roma. Paulo não ensina aqui a submissão a um Estado ideal e cristianizado, mas sim a um império que determinava a adoração ao imperador e apoiava o paganismo. E o ensino apostólico é que este império era ministro de Deus para louvor dos que fazem o bem e para castigar os que praticam o mal. Logo, há um dever do Estado diante de Deus.

O que é "bem" aqui? Certamente não é o apoio ao cristianismo e nem a valores cristãos. O Império Romano deveria premiar os bons cidadãos que andam de acordo com a lei romana, naquilo em que ela não fere as leis de Deus. Bom aqui, pelo contexto, é quem paga os tributos e impostos e respeita e honra as autoridades. Bom são os que se sujeitam as autoridades superiores, naquilo em que elas não se opõem a Deus. Quando a Bíblia fala que o Estado deve premiar quem faz o "bem", ela não está falando de premiar os castos ou os devotos, mas sim os bons pagadores de impostos, os que respeitam as leis estatais e honram as autoridades.

O que seria então o "mal"? Por analogia, seria o oposto. Maus seriam os rebeldes às autoridades. Aqueles que querem derrubar o governo (como os zelotes), que desonram e desrespeitam os agentes estatais e não pagam impostos nem cumprem com seus deveres cívicos.

Mas há algo a mais. O Estado também deve ser um vingador dos que praticam o mal. Ao meu ver, a expressão faz sentido se pensarmos em atos cometidos contra o próximo. Quando um cidadão prejudica a outro por meio do falso testemunho, do roubo, do homicídio (o que inclui o aborto), do engano, do adultério ou de outras formas, aí sim o Estado deve coibir o pecado.


Todavia o texto não é específico. Ele não diz que tipo de males devem ser vingados, a lista que fiz acima tem base nos Dez Mandamentos e é exemplificativa. A Bíblia também não determina a pena, embora dê ao Estado o direito de usar a espada, ou seja, o poder de matar.

Os outros textos do Novo Testamento não nos ajudam muito. Apenas reforçam o nosso dever de obedecer e interceder pelas autoridades, como o caminho para uma vida mansa e tranquila, onde podem florescer a piedade e o respeito:

Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com toda piedade e respeito. (1 Timóteo 2:1-2)

Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor, quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades, como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores como para louvor dos que praticam o bem. Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos; como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus. Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei. (1 Pedro 2:13-17)
Agora é preciso reparar no que a Bíblia não atribui ao Estado. Os apóstolos recomendam a submissão a um Estado pagão e não exigem que ele se torne "confessionalmente cristão". Não exigem que o Estado defina o que é família ou casamento, nem que ele resguarde a visão cristã sobre tais assuntos. Não atribuem às autoridades o dever de celebrar casamentos. Não pedem que o Estado regule a forma como as crianças são educadas pelos pais, o que as pessoas pensam ou escrevem.

O que a igreja cristã queria do Estado? Um caso é emblemático: a prisão e julgamento do apóstolo Paulo. Lendo os últimos capítulos de Atos, fica claro que ele queria apenas três coisas:

- Liberdade para pregar o Evangelho (liberdade de opinião);
- Proteção contra a perseguição dos judeus (liberdade religiosa);
- Julgamento justo.

Resumindo: o Estado deve premiar quem faz bem e castigar os malfeitores (criminosos) e garantir as 
liberdades fundamentais. Ir além disso é querer que o Estado faça mais do que deve.


Quadro representando o apóstolo Paulo preso

O direito de pecar


E aí entra um "pequeno detalhe" que parece ser ignorado por muitos cristãos. O mesmo direito que vale para nós deve valer para os outros. Assim como somos livres para fazer o que é certo, também somos livres para pecar.

Há limites? Sim, aqueles traçados pelo Novo Testamento, os quais são sabiamente vagos e deixados em aberto. Na prática, muitas dessas restrições ao pecado são combinadas entre os cidadãos de cada país. A Bíblia não dá uma fórmula exata.

Nem mesmo a gravidade do pecado determina a restrição. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, os pecados mais graves não são fatos como o estupro ou o homicídio. Biblicamente falando, não há pecados mais graves e de consequências mais devastadoras do que a blasfêmia ou a idolatria. Tanto que as ordens referentes ao respeito a Deus são as que abrem os Dez Mandamentos. Todavia, é dever do Estado proteger o direito dos cidadãos à blasfêmia (liberdade de opinião) e à idolatria (liberdade religiosa). Mas, se os blasfemos e idólatras queimarem um templo cristão (um pecado menor), então eles devem ser punidos por trazerem prejuízo ao próximo e ferirem a liberdade de culto dos cristãos.


E importa que seja assim. Vejam bem, nos dias dos apóstolos, o cristianismo era uma minoria religiosa. A vontade da maioria, seja na Palestina (judeus) seja no Império Romano (pagãos) era a de por fim aos cristãos. O que os apóstolos queriam era garantir o direito desta minoria se expressar livremente.


E quando os cristãos são maioria, deveriam agir como judeus ou pagãos? O direito e as liberdades valem apenas para nós e não para os outros?


Só há uma conclusão sensata disso tudo: as pessoas devem ser livres para pecar, assim como nós somos livres para sermos santos. Cabe ao Estado garantir esta liberdade, mesmo que, para isso, ele precise se posicionar contra a Igreja.

Sim, foi isso mesmo o que eu quis dizer. Se os cristãos querem ser livres para, por exemplo, pregar que o homossexualismo é um pecado que não deveria existir na sociedade, então os homossexuais devem ser livres para dizer que o cristianismo é uma fé que faz mal a todos. Agora, no dia em que cristãos quiserem matar homossexuais e vice-versa...no momento em que pessoas deixam de ser contratadas por causa de sua fé, raça, opção sexual ou gênero...nessas horas o Estado precisa sim intervir e impedir que as liberdades fundamentais sejam quebradas.

Por isso, se um dia 99,9% dos brasileiros forem cristãos professos e sinceros, o 0,1% restante ainda deve ter o direito de blasfemar, idolatrar e cometer os pecados que eles quiserem, desde que não façam o mal ao próximo.

Fica, porém, uma advertência. Se usamos a nossa liberdade como pretexto para fazer o mal, o Estado pode até não fazer nada. Mas Deus nos julgará e responderemos diante d'Ele pelo que fizemos nesta vida.

A união estável homoafetiva


Creio que a discussão acima é básica na hora de discutirmos várias questões. Uma delas é a união estável hetero ou homoafetiva. O meu texto anterior gerou muitas reações negativas e, ao meu ver, uma grande incompreensão dos verdadeiros fundamentos da questão.

Eu não discuto que o homossexualismo é um pecado, assim como o concubinato, o divórcio e a fornicação também o são. Todos estes atos serão julgados por Deus e, se não houver arrependimento, trarão condenação. Como cristão, não apoio nenhum destes pecados, incluindo-se aí a união estável de qualquer tipo.

No entanto, defenderei sim o direito de qualquer pessoa unir-se livremente a quem quer que seja. Faço isso por dois motivos básicos. O primeiro é o de que isso se trata do direito de qualquer um, independente de ser santo ou pecador. Se eu posso, se o Estado não deve me dizer se fico solteiro ou não, se caso ou não, com quem me relaciono...então todos podem. Todos. O segundo motivo é o que explorei no post anterior. Todos os dias milhões de pessoas pecam, independente da pregação evangélica ou mesmo da coerção estatal. Estes pecados geram efeitos jurídicos e sociais que não podem ser ignorados pelo Estado. E, baseado no exemplo de Salomão, entendo que o Estado pode sim acolher demandas "não-cristãs" e atendê-las.

E Salomão não é o único exemplo. Considerando 2 mil anos de história, desde Abraão até os apóstolos, em apenas cerca de 900 anos (de Josué ao fim do reinado de Judá, somando o período dos macabeus) os israelitas viveram como soberanos em um Estado. No resto do tempo o povo de Deus viveu em exílio, como uma minoria, em meio a outras nações pagãs. Escravos no Egito, conquistados na Babilônia, na Pérsia, debaixo dos ptolomeus e dos selêucidas ou do Império Romano. Antes de Jesus foram cerca de 500 anos em que Israel viveu em meio a impérios plurais, numa espécie de preparação para que o Evangelho se tornasse universal. E a Igreja sempre viveu "em exílio", espalhada no meio de outras nações...pelo menos até o Edito de Milão.

Neste cenário, a Bíblia mostra homens como José do Egito, Daniel e Mordecai trabalhando para impérios pagãos e tendo que governar para judeus, babilônios, persas, egípcios e outros povos. Guardadas as devidas proporções, eles zelaram por essas liberdades. Nenhum deles impediu o culto a Isis, Bel ou Marduk ou outras práticas abomináveis ao Senhor, mas trabalharam para garantir a paz e a liberdade de culto para os judeus. E eles acolheram (e atenderam) a demandas de pecadores notórios. José, por exemplo, preservou o direito de posse e sustentou os sacerdotes egípcios (Gênesis 47:22). E tenha certeza: não era para o Deus de Israel que esses sacerdotes oravam.

A união estável encaixa-se neste tipo de demanda atendido por Salomão e por José. Seja homo ou heteroafetiva, ela é pecaminosa para a Bíblia e para o Senhor. Trata-se, na verdade, de uma inovação jurídica para regular famílias que não se estruturam em torno do casamento cristão monogâmico heterossexual. Se não pode para um, não pode para ninguém: a desculpa de que são 2 pecados ao invés de 1 não cola. Posso até discutir se a iniciativa deveria ser do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso Nacional, mas não discuto a existência do Direito e a necessidade de alguma regulação.

Se há quem não concorde, então que procure os congressistas e os convença a dar uma outra solução. Eu gostaria de ver o que seria proposto.

Quanto à Igreja, meu conselho é que nos concentremos em nossa verdadeira missão. Se nós formos, fazermos discípulos, batizá-los e ensiná-los a obedecer os ensinos de Jesus, aí sim o reino de Deus chegará ao nosso país.

E isso não significa um silêncio quanto ao Estado. Mas é preciso antes definirmos claramente o que devemos esperar do Estado e como podemos influenciá-lo seguindo os ensinos de Jesus e da Palavra. A sociedade será purificada pela pregação da Bíblia e não pela Constituição ou pelos julgados do STF. Que tenhamos este entendimento.

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro

http://reformaecarisma.blogspot.com.br/2011/05/o-estado-e-o-direito-de-pecar.html

Comentários